Saúde Mental: O Guia de Etiqueta

Aconteceu recentemente o lançamento do Guia de Etiqueta de Saúde Mental, por parte da Cruz Vermelha Portuguesa. Este guia junta, pela primeira vez, o tema das regras de etiqueta com o da saúde mental, promovendo a sua desmistificação, dando a conhecer aquilo que são os primeiros socorros psicológicos e mostrando como aplicá-los.

O que são regras de etiqueta? Se pararmos para observar o conceito, não passam de palavras escritas num pedaço de cartão, que agarrado ao produto que descreve nos orienta sobre a melhor forma de cuidar do mesmo. Diz-nos de que é feito, como se preserva, a probabilidade de ser indicado para nós de acordo com o seu tamanho ou faixa etária apropriados. No fundo, regras de etiqueta surgem na humanidade como facilitadores de interação entre o agente e o objeto.  O que também são regras de etiqueta? Quando nos informam de como corresponder às expectativas de alguém que existe longe, no espaço ou até no tempo, mas que assertivamente nos impele a agir de acordo com a sua visão do mundo. E nós, vitimas da nossa essência social, correspondemos àquelas que, entre muitas, se propagaram como normativas, respeitosos do meio e do outro, mas também tementes a algo muito maior que qualquer entidade divina, nós próprios.

É este o poder das palavras. Estas entidades estanques surpreendem-nos repetidamente pela forma como se transformam de acordo com o contexto. Ora nos guiam, ora nos oprimem. Que na verdade de pouco difere à excepção do livre arbítrio no caminho traçado. E de que são feitas estas palavras? As palavras são feitas de nós. Nascem em nós, existem em nós, persistem por nós. Aquilo que eu digo é meu, aquilo que ouves é teu, aquilo que está escrito, é do mundo.

A nossa mente é feita de palavras. É através das palavras que conversamos connosco, são elas que nos surgem acutilantes nos momentos em que nos criticamos, nos rebaixamos, e nos mal-dizemos, e que nos elevam quando perseveramos, quando conquistamos, quando celebramos. A história da nossa vida é feita de palavras, porque o que aconteceu já não existe senão nas palavras que usamos para o descrever. E é através delas que concretizamos a nossa existência racional no mundo.

As palavras que a humanidade concordou em utilizar para concretizar a idea de saúde mental são claras: “um estado de bem estar”, “capacidade de realizar o nosso potencial”, “contribuir positivamente para a comunidade”.

Obriga-nos então, a regra de etiqueta, a que quando nos perguntam se “está tudo bem?”, garantindo que a nossa saúde física está intacta, façamos o exercício de confirmar se acedemos pelo menos a estas três premissas. “Sinto-me bem?”, “estou em direção de realizar o meu potencial?” (Seja ele qual for), “tenho contribuído positivamente para a minha comunidade?”.

Ao que ela não nos obriga, é a responder “está tudo, e contigo?”. É uma resposta válida, enquanto protocolo. É este o poder das palavras. Mas não é necessariamente uma resposta verdadeira. Só que é este o poder das palavras… De tantas vezes repetirmos o protocolo, esquecemo-nos de que nem sempre a pergunta é protocolar.

Aqueles que nos amam perguntam não para saber, mas porque querem saber. Estes não procuram o protocolo mas a verdade. E a verdade das palavras é muitas vezes dura, mas invariavelmente bela, porque é real. É este o potencial das perguntas, e a fatalidade das respostas.

Nem todos estamos preparados para a verdade. Principalmente para a verdade subjetiva: a que se sente. A nossa, e a dos outros. Esta deixa-nos vulneráveis ao ponto de preferirmos suprimi-la.

“As pessoas não têm que levar com os meus problemas.” Pensamos nós. Mas serão os nossos problemas efetivamente só nossos? Qual o peso que carregam as palavras que o nosso silêncio esconde, e que invariavelmente caiem como uma chuva de pedras sobre quem nos acompanha? Qual o semblante que perfaz mais de 1000 palavras, em combinações diversas aos olhos de cada um, e que conta uma versão da história que não é necessariamente a nossa?

O estigma associado ao que não é simétrico, positivo, brilhante e luminoso torna difícil a normalização de estar “tudo mal”. Esquecemo-nos frequentemente de carregar o fardo da nossa humanidade connosco, por consequência do nosso instinto. O que é negativo é uma ameaça, e por isso vou defender-me.

Esta relação aparentemente lógica serviria perfeitamente, não fosse este comportamento uma reação ao invés de uma resposta. O instinto de fuga não acede ao racional, e por isso não se deve sobrepor à nossa experiência enquanto pessoas capazes de construir e moldar as suas realidades, através das palavras.

A ausência de segurança psicológica no nosso dia a dia afasta-nos da possibilidade de vivermos a nossa vida na sua natural oscilação. Há momentos bons, momentos maus, e momentos neutros, mas nem sempre eles vão existir assim aos nossos olhos, e através das nossas palavras.

Estarmos preparados para responder com verdade e perguntar com compaixão se “está tudo bem?” é produzir a pergunta, ou interpreta-la, como um “como estás?”.

É abrir as portas à verdade, é irradicar o estigma, e é deixarmo-nos de etitretas.

Concluo como comecei. As palavras significam tudo e o seu contrário. Saibamos decidir quais colocar na nossa etiqueta, para que, quando precisarmos de orientação, possamos ler as nossas instruções, e lembrarmo-nos que somos feitos de humanidade, que nos preservamos com a verdade, e que somos apropriados a todos aqueles que compreendem que saúde mental é um bem essencial.

É possível obter o guia gratuitamente nas formações de primeiros socorros psicológicos da Cruz Vermelha Portuguesa ou online, no website dedicado ao projeto: https://eu4health.cruzvermelha.pt/.
Também se encontram disponíveis as versões em inglês e ucraniano.

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